quinta-feira, 17 de maio de 2012

Revanche, sim

Por Kennedy Alencar

A tradição de conciliar é uma força contraditória do Brasil. Ora, nos faz avançar, porque a conciliação é mesmo o melhor caminho. Ora, é um âncora que nos prende ao atraso, porque conciliar também pode ser congelar problemas que merecem enfrentamento.
Na virada dos anos 70 para os 80, a ditadura militar de 1964 começou a cair de madura. Já havia falido a eficiência econômica do regime, hoje apontada como uma suposta virtude daqueles tempos. A Lei da Anistia de 1979 e o governo Figueiredo foram os últimos suspiros de uma ditadura que estava morrendo.
Para tentar ver com equilíbrio aquele período, invoca-se frequentemente o mito da competência tecnocrática do regime dos generais. Mas o fato é que os militares foram incompetentes na política e na economia.
Será que a nossa infraestrutura não teria prosperado muito mais com democracia? As tais obras faraônicas aconteceram pelos méritos do regime? Itaipu só foi construída por causa da ditadura? Ou muitas dessas obras foram projetos mal pensados e mal executados, como a Transamazônica e o acordo nuclear com a Alemanha?
Difícil enxergar algo de bom naqueles tempos, com exceção das músicas do Chico e da voz da Elis. A gente deve lembrar que uma geração inteira de líderes jovens foi morta, presa e torturada. E muitos que não aderiram à luta armada tiveram o mesmo destino. O Brasil perdeu talentos. Deixou de avançar porque a democracia foi interrompida. Não havia risco de golpe de esquerda nem de ditadura comunista. O país piorou com o golpe.
Hoje é um dia histórico. Vinte e sete anos após o fim oficial da ditadura, foi instalada a Comissão da Verdade. Antes tarde do que nunca.
Invocando nossa tradição conciliatória, setores da sociedade querem que os dois lados sejam investigados, referindo-se aos agentes da ditadura e aos militantes de organizações de esquerda.
Como já registrado neste espaço em colunas anteriores, não dá para tratar os dois lados com igualdade. Os militantes de esquerda, sejam os que pegaram em armas, sejam os que optaram pela resistência pacífica, já foram perseguidos, presos, torturados, mortos e exilados. Isso não aconteceu com os agentes do Estado que, ilegalmente, investigaram, prenderam, torturaram e mataram. O foco deve ser a ditadura.
Pela lei que a criou, a Comissão da Verdade não terá poder de punição. Poderá investigar para relatar o que aconteceu. Eventuais punições dependerão de outras leis e de outras interpretações da Justiça --algo que parece, hoje, bem distante da realidade.
Portanto, não existe hipótese de revanchismo. Mas há, sim, a oportunidade para uma revanche da democracia. Como disse a presidente Dilma Rousseff, "merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia".
Essas famílias, presidente, merecem a verdade. Mas também a merecem todos os brasileiros, sobretudo os mais jovens. Para que nunca mais algo assim aconteça no Brasil.

Kennedy Alencar escreve na Folha.com às sextas. Na rádio CBN, é titular da coluna "A Política Como Ela É", no "Jornal da CBN", às 8h55 de terças e quintas. Na RedeTV!, apresenta o "É Notícia", programa dominical de entrevista, e o "Tema Quente", atração diária com debate sobre assuntos da atualidade.

domingo, 6 de maio de 2012

Mantra corrupção favorece... corrupção, pois neutraliza e encobre o substancial

Por Vladimir Safatle:

Política de uma nota só

Há várias maneiras de despolitizar uma sociedade. A principal delas é impedir a circulação de informações e perspectivas distintas a respeito do modelo de funcionamento da vida social. Há, no entanto, uma forma mais insidiosa. Ela consiste em construir uma espécie de causa genérica capaz de responder por todos os males da sociedade. Qualquer problema que aparecer será sempre remetido à mesma causa, a ser repetida infinitamente como um mantra.

Isto é o que ocorre com o problema da corrupção no Brasil. Todos os males da vida nacional, da educação ao modelo de intervenção estatal, da saúde à escolha sobre a matriz energética, são creditados à corrupção. Dessa forma, não há mais debate político possível, pois o combate à corrupção é a senha para resolver tudo. Em consequência, a política brasileira ficou pobre.

Não se trata aqui de negar que a corrupção seja um problema grave na vida nacional. É, porém, impressionante como dessa discussão nunca se segue nada, nem sequer uma reflexão mais ampla sobre as disfuncionalidades estruturais do sistema político brasileiro, sobre as relações promíscuas entre os grandes conglomerados econômicos e o Estado ou sobre a inexistência da participação popular nas decisões sobre a configuração do poder Judiciário.

Por exemplo, se há algo próprio do Brasil é este espetá-culo macabro onde os escândalos de corrupção conseguem, sempre, envolver oposição e governo. O que nos deixa como espectadores desse jogo ridículo no qual um lado tenta jogar o escândalo nas costas do outro, isso quando certos setores da mídia nacional tomam partido e divulgam apenas os males de um dos lados. O chamado mensalão demonstra claramente tal lógica. O esquema de financiamento de campanha que quase derrubou o governo havia sido gestado pelo presidente do principal partido de oposição. Situação e oposição se aproveitaram dos mesmos caminhos escusos, com os mesmos operadores. Não consigo lembrar de nenhum país onde algo parecido tenha ocorrido.

Uma verdadeira indignação teria nos levado a uma profunda reforma política, com financiamento público de campanha, mecanismos para o barateamento dos embates eleitorais, criação de um cadastro de empresas corruptoras que nunca poderão voltar a prestar serviços para o Estado, fim do sigilo fiscal de todos os integrantes de primeiro e segundo escalão das administrações públicas e proibição do governo contratar agências de publicidade (principalmente para fazer campanhas de autopromoção). Nada disso sequer entrou na pauta da opinião pública. Não é de se admirar que todo ano um novo escândalo apareça.

Nas condições atuais, o sistema político brasileiro só funciona sob corrupção. Um deputado não se elege com menos de 5 milhões de reais, o que lhe deixa completamente vulnerável -para lutar pelos interesses escusos de financiadores potenciais de campanha. Isso também ajuda a explicar porque 39% dos parlamentares da atual legislatura declaram-se milionários. Juntos eles têm um patrimônio declarado de 1,454 bilhão de reais. Ou seja, acabamos por ser governados por uma plutocracia, pois só mesmo uma plutocracia poderia financiar campanhas.

Mas como sabemos de antemão que nenhum escândalo de corrupção chegará a colocar em questão as distorções do sistema político brasileiro, ficamos sem a possibilidade de discutir política no sentido forte do termo. Não há mais dis-cussões sobre aprofundamento da participação popular nos processos decisórios, constituição de uma democracia direta, o papel do Estado no desenvolvimento, sobre um modelo econômico realmente competitivo, não entregue aos oligopólios, ou sobre como queremos financiar um sistema de educação pública de qualidade e para todos. Em um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário internacional, nossa contribuição para a reinvenção da política em uma era nebulosa no continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de zero.

Tem-se a impressão de que a contribuição que poderíamos dar já foi dada (programas amplos de transferência de renda e reconstituição do mercado interno). Mesmo a luta contra a desigualdade nunca entrou realmente na pauta e, nesse sentido, nada temos a dizer, já que o Brasil continua a ser o paraíso das grandes fortunas e do consumo conspícuo. Sequer temos imposto sobre herança. Mas os próximos meses da política brasileira serão dominados pelo duodécimo escândalo no qual alguns políticos cairão para a imperfeição da nossa democracia continuar funcionando perfeitamente.

Vladimir Safatle

Professor da Faculdade de Filosofia da USP.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Imposto de Renda pelo ralo (lei de incentivo ??? ao esporte)

Por Gil Castello Branco

O ex-presidente dos Estados Unidos, Thomaz Jefferson dizia: “Mais importante do que a elaboração da lei é a sua aplicação”. Assim, é necessário balanço sobre os primeiros cinco anos da Lei 11.438 que trata de Incentivos fiscais para o fomento das atividades esportivas no país.
Na prática, projetos aprovados pelo Ministério do Esporte podem ser custeados pela iniciativa privada em troca do abatimento do imposto de renda devido, nas proporções de 6% para pessoa física e 1% para jurídica.
O primeiro problema é que faltaram projetos para alcançar os R$ 2,3 bilhões que o Ministério da Fazenda disponibilizou como isenção desde 2007. Desse total apenas R$ 1,7 bilhão foi aprovado pelo Ministério. O segundo entrave é que somente a metade do montante aprovado foi efetivamente captada junto ao empresariado e aos cidadãos interessados na inclusão social de jovens de baixa renda e na formação de atletas olímpicos.
Pela visibilidade que oferece aos patrocinadores, o segmento do esporte de rendimento tem mais facilidade de captação do que as modalidades educacional e de participação. Além disso, existe acentuada concentração de projetos na região Sudeste, especialmente em São Paulo. Os grandes clubes e as organizações não governamentais comandadas por ex-atletas vêm recebendo parcela significativa dos incentivos. Entre eles, os institutos de Ronaldinho Gaúcho, Roberto Dinamite, Guga Kuerten, Ayrton Senna e outros.
Como, para alguns, tudo vale a pena se a verba não é pequena, a isenção fiscal virou uma festa.
A maior aberração é a concessão do benefício para projetos com evidente capacidade de angariar patrocinadores na iniciativa privada. A regra é clara: “É vedada a concessão de incentivo a projeto desportivo em que haja comprovada capacidade de atrair investimentos… (Art. 24, inciso II, do Decreto 6.180/2007).”
Apesar da proibição, auditoria da Controladoria Geral da União, em 2010, listou diversos favorecimentos indevidos. Entre eles, a isenção de aproximadamente R$ 3 milhões à Federação Paulista de Hipismo para eventos que incluíam o Athina Onassis Internacional Horse Show. A personagem que dá nome à competição é a neta e única descendente viva de Aritóteles Onassis, o lendário armador grego, um dos maiores magnatas da história.
Curiosamente, a competição já contava com cotas de patrocínio que somavam R$ 14 milhões provenientes de empresas como Rolex, Daslu, Hyundai, Vivo, Sony, dentre outras. Além disso, a venda de ingressos gerou receita adicional estimada em R$ 4 milhões, o que tornava dispensável o bônus oficial tupiniquim.
Nesse mesmo sentido, como justificar a isenção fiscal de R$ 1 milhão para custear o piloto de 15 anos Pietro Fittipaldi, neto de Emerson Fittipaldi, que está competindo na fórmula Nascar americana? A tese de que “neto de peixe peixinho é” pode até ser verdadeira, mas não necessariamente o “peixinho” precisa ser criado à custa dos impostos que a Receita Federal deixa de arrecadar.
A isenção tributária está também financiando o futebol profissional. O São Paulo, por exemplo, aprovou projetos de quase R$ 20 milhões para formação de atletas de alta performance, construção de vestiários, alojamentos, arquibancadas e estacionamentos. Como a enorme maioria dos clubes está inadimplente junto ao governo federal, algumas propostas que beneficiam outras modalidades esportivas são encaminhadas por entidades desconhecidas, como o Instituto Atleta Rubro Negro e a Associação Botafogo Olímpico.
Por fim, eventos que já eram bancados pela iniciativa privada agora são realizados – pelas mesmas empresas – com isenção fiscal. Desta forma, trocamos o seis (privado) pela meia dúzia (pública). Até torneios de golfe patrocinados por poderosos bancos internacionais, com a intenção de fidelizar clientela de elevado poder aquisitivo, passaram a gozar do privilégio. No frigir dos ovos, o Tesouro está deixando de arrecadar impostos em favor de campanhas privadas de marketing. Como contraste, a metade das escolas brasileiras não possui uma quadra esportiva ou a que existe não está em condições de uso.
O Estado ao aprovar a Lei de Incentivo valorizou o esporte no desenvolvimento da sociedade e compartilhou com o setor privado a tarefa de financiar as suas atividades. Passados cerca de cinco anos, precisamos seguir o conselho do Thomaz Jefferson e reavaliar a forma como a lei vem sendo aplicada. A carruagem não pode virar abóbora.


Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas